13 de janeiro de 2005

Tsunami

Um Tsunami de Imagens A Fotografia É o Lugar para Repensar a Morte
in Publica Domingo, 09 de Janeiro de 2005, por Paulo Moura



Muitos editores de jornais em todo o mundo escolheram no mesmo dia a mesma imagem para as suas primeiras páginas. Porquê? Milhares de fotógrafos profissionais e amadores correram para o local da tragédia. Porquê? Jornais, revistas, a internet foram invadidos por imagens, terríveis mas também por vezes muito belas, das consequências do tsunami. Porquê? Sérgio Mah, especialista de fotografia, ajudou-nos a encontrar algumas respostas. E ainda mais perguntas.


AP Photo/Gurinder Osan

Poucos acontecimentos terão provocado uma tal avalanche de imagens. Desde a ocorrência do tsunami, a 26 de Dezembro, milhares de fotografias começaram a chegar às redacções dos jornais. Movidos por um qualquer impulso irresistível, repórteres profissionais mas também muitos fotógrafos amadores voaram de imediato para as praias da Tailândia, Indonésia, Sri Lanka ou Índia. As imagens começaram a chegar, ao ritmo das notícias da morte. Imagens de horror mas também, por vezes, de uma estranha beleza. Imagens de cadáveres e de aldeias destruídas, e do mar e da sua potestade, de casas transformadas em escombros, de paisagens devastadas, absolutamente vencidas por uma força superior, ancestral. Como se, pela primeira vez, se tivesse tornado possível fotografar um mundo primitivo, selvagem, de luta terrível e implacavelmente desigual entre o Homem e a Natureza. Um mundo perdido, de emoções extremas, simultaneamente próximo e distante. Terá sido isto que atraiu os caçadores de imagens? Terá sido o fascínio, ou o medo? Terá a notícia do tsunami feito soar alguma espécie de alerta inconsciente, genético? Activado algum nexo obscuro, religioso, ligado às grandes catástrofes naturais?


Getty Images/Paula Bronstein

Porquê tantas imagens? E porquê esta? No mesmo dia, entre milhares de fotografias enviadas pelas agências internacionais, grande número de jornais de referência em todo o mundo optaram por publicar na primeira página esta imagem dos pais chorando o filho morto em Silver Beach, Cuddalore, no Sul da Índia. Que critério, que instinto terá levado tantos editores a escolher a mesma fotografia, transformando-a num ícone?

Convidámos um especialista de fotografia para nos ajudar a compreender estas imagens e as razões e circunstâncias da sua produção. Sérgio Mah, sociólogo, comissário de exposições e professor de história e teoria da fotografia na faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, seleccionou algumas das imagens que publicamos nestas páginas, e ajudou-nos a "ler" para além do que se "vê".

Para ele, as razões que levam uma imagem a tornar-se num ícone de um acontecimento são muitas vezes circunstanciais e relevam de uma intenção, propangadística ou pragmática. Não de alguma misteriosa propriedade intrínseca à própria imagem. Há no entanto características numa fotografia que a tornam passível de se tornar ícone. No caso da imagem de Silver Beach, há a alusão ao "arquétipo da representação da dor na pintura clássica". Há um gesto de "sublimação da dor" no rosto da mulher, "próximo do modelo histórico, ocidental, da sublimação da imagem da dor". A brancura dos seus dentes será, para Sérgio Mah, o que Roland Barthes chamava o "punctum" de uma imagem, o pormenor que nos toca e que concentra todo o significado da composição. "O olhar vagueia pela imagem mas recai sempre nesse ponto, na brancura daqueles dentes". A fotografia "regista o ponto mais elevado da dor".


REUTERS/Arko Datta

Além disto, há a imagem arquetípica da família humana na cultura ocidental, pai, mãe e um filho, o mar em fundo, responsável pela tragédia mas agora numa perturbadora quietude. O "contraste entre a placidez do mar e a violência das figuras", obtido também através de um tratamento de cor quase "renascentista". "Leonardo da Vinci usava cores frias e desfocadas no fundo, para realçar as figuras em primeiro plano, criando um tipo especial de perspectiva".

Mas esta "sublimação da dor" remete-nos para uma marca distintiva da arte fotográfica que ajuda a compreender o interesse dos seus profissionais e adeptos pelo tsunami: a anestesia. "A fotografia ajuda-nos a suportar a dor. Não tem cheiro, não tem movimento. Através dela, é possível observar longa e calmamente um cadáver, o que na realidade não conseguiríamos fazer".

Também por essa capacidade de imobilizar e "filtrar" um momento, "a fotografia é o domínio ideal para se repensar a morte". Para se observar o corpo, como um objecto, parado no tempo.


Saeed Khan / AFP - Getty Images

As imagens fotográficas são sempre, explica Sérgio Mah, vagas, imperfeitas. É essa característica que nos permite, através delas, observar a realidade sem medo. Mas é também essa característica que nos obriga a um esforço para completar a imagem e a sua compreensão. E para isso recorremos ao nosso próprio "arquivo mental de imagens", às nossas próprias experiências visuais e emocionais. E por isso por vezes a fotografia nos toca de uma forma mais íntima do que a própria realidade. E nos permite fazer a apropriação dessa realidade. "É esse o papel dos ícones. Ajudam-nos a apropriar-nos dos acontecimentos reais, mesmo quando não os compreendemos".

Há no entanto outro desconforto, muitas vezes insuportável, na observação das imagens da tragédia. Com que direito se faz arte com a dor? "Há sempre um dilema moral: no momento de disparar, o fotógrafo podia sempre ter optado por largar a câmara e ajudar as pessoas".


Emmanuel Dunand / AFP - Getty Images

Para Sérgio Mah, não é legítimo usar recursos estilísticos para retratar a violência. Por isso, são mais "justas" e frequentemente mais tocantes as imagens que o fazem de forma "diferida". Fotografias panorâmicas, ou de situações que só indirectamente nos falam da dor humana marcam uma "distância" que devemos preferir. "Sou avesso a todas as estratégias de estilização autoral, que conduzem a que os acontecimentos dramáticos sejam ajustados, reconvertidos e reformulados em função de um maneirismo formal que, no limite, neutraliza e esvazia a própria experiência e percepção da violência mais extrema. Quando se diz: 'eesta imagem é bela, apesar de mostrar uma situação dramática', está-se a reproduzir esse equívoco moral. Sejamos claros: a tragédia não é bela. Sobretudo se pensarmos que ela nos pode atingir a nós".



David Longstreath / AP

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